À CONVERSA COM... DR. GABRIEL NOGUEIRA
Podes contar-nos um pouco sobre tua trajetória? O que o te motivou a seguir a carreira de medicina?
Tudo começou em 2011 quando me deparei com uma decisão entre mãos que ditaria muito do meu percurso profissional. Sempre tive um carinho especial pelo desporto e pela Medicina, mas foi a vontade de ajudar o próximo, de lidar com as outras pessoas e de poder “curar o seu mal-estar” que me levou à escolha pela Medicina. Não há como não me sentir privilegiado quando, nos dias de hoje, consigo aliar a Medicina ao desporto, através da Medicina Desportiva. Acreditem que fazer o que gostamos torna tudo mais fácil e é o que nos faz levantar todos os dias da cama com a mesma vontade de fazer sempre o melhor.
Quais foram os maiores desafios que enfrentaste ao longo da tua formação como médico?
O primeiro desafio foi ter de viver a 500 km de casa e da família, com 18 anos vim de Vila Real sozinho para estudar em Lisboa. Outro dos desafios foi conseguir terminar o curso de Medicina com bom aproveitamento. Também tenho de referir como um desafio todo o investimento no estudo e o tempo para me atualizar para poder oferecer às pessoas os melhores cuidados, uma vez que é uma área que está em constante evolução e atualização.
Sempre tiveste o desejo de trabalhar no futebol ou foi algo que surgiu ao longo do caminho?
Sendo o desporto, e em particular o futebol, uma das minhas paixões, mesmo antes de ter optado por uma carreira profissional na área médica, já era uma ambição minha poder trabalhar a fazer o que mais gosto (Medicina) naquilo que mais gosto (futebol).
Como surgiu a oportunidade de trabalhar no Casa Pia AC? Podes partilhar como tem sido essa experiência?
A minha experiência no futebol profissional começou em 2020 quando assumi o cargo de diretor clínico do Belenenses SAD durante duas épocas, seguiu-se o UD Vilafranquense SAD, e após um ano de trabalho surgiu o convite do Casa Pia para dar continuidade ao bom trabalho que estava a ser feito pela Unidade de Saúde e Performance (USP) do clube. A experiência tem sido muito boa. Apesar de ter uma grande responsabilidade, o Casa Pia AC oferece-me condições para que possa desenvolver um bom trabalho. O clube além de garantir o acesso a novos equipamentos também investe em recursos humanos de excelência para que a USP tenha sucesso e assim o clube fique mais perto dos objetivos.
Como é o teu dia a dia como médico de um clube de futebol? Podes descrever a tua rotina com os jogadores?
É difícil explicar um dia de um médico no futebol. O dia começa no minuto em que acordamos e por vezes à meia noite ainda estão a ser resolvidos problemas e a ser tomadas decisões para o treino, a semana ou o jogo seguinte. No estádio a rotina começa com a reavaliação dos atletas que estão em dúvida para o treino e a gestão da terapêutica dos jogadores medicados. Durante o treino, presto assistência aos jogadores e avalio-os caso aconteça algum evento passível de lesão. Se não forem necessários cuidados imediatos, normalmente o jogador é reavaliado pelo fisioterapeuta 2 a 3 horas após o momento da lesão e posteriormente é trabalhada a informação obtida. Caso seja necessário requisito exames complementares de diagnóstico ou consulta de especialidade e no final é dado um prognóstico à equipa técnica e ao clube. No pós treino realizo procedimentos médicos mais invasivos, por vezes ecoguiados, reavalio em conjunto com os fisioterapeutas as queixas pós treino e, se necessário, realizo ecografia “ à cabeceira”. Para além da parte prática não nos podemos esquecer da dimensão e dos recursos que são usados num departamento médico/fisioterapia no qual a minha responsabilidade passa pela encomenda de medicação, gestão dos sinistros dos jogadores no seguro, marcação de consultas, entre outras mais.
Qual a maior diferença entre a medicina desportiva e outras áreas da medicina nas quais já atuaste?
Para falar em Medicina Desportiva é obrigatório falar em prática desportiva onde o foco é ganhar, superar o adversário ou mesmo a superação individual de cada desportista. Para isto acontecer, os atletas necessitam de um bom estado de saúde física e mental, estratégias de recuperação de fadiga ou de prevenção de lesões, estratégias de diagnóstico ou recuperação de lesões ou mesmo ajuda no diagnóstico de condições que contraindicam a prática desportiva. É no sentido de suprir essas necessidades que surge a medicina desportiva. A medicina desportiva, por sua vez, nos tempos atuais representa não só o aperfeiçoamento da performance mas também um papel de prevenção que visa a proteção do atleta, através do exame médico-desportivo e a prevenção de doenças cardiovasculares, metabólicas, psiquiátricas, entre outras, através da prescrição de exercício físico regular. Quando comparadas às outras áreas médicas o foco é o mesmo: a pessoa. A Medicina Desportiva dentro de um clube de futebol profissional, além de respeitar sempre os princípios éticos e morais médicos, está associada dos objetivos do clube, ou seja, tem sempre em conta o sucesso desportivo. Em todos os momentos são tomadas decisões com grande responsabilidade que garantam um equilíbrio entre o que é o contexto e os objetivos do clube e aquilo que são os critérios definidos pelo departamento médico.
Quais são os maiores desafios que enfrentas enquanto médico desportivo no Casa Pia AC?
Os grandes desafios são tomar decisões de grande responsabilidade que permitem prevenir lesões aumentando a disponibilidade para jogo, diagnosticar correta e precocemente lesões e realizar reabilitações com qualidade que permitam ao clube ter os jogadores com índices de performance semelhantes ou superiores ao momento antes da lesão. Este sucesso está inerente a uma equipa multidisciplinar muito diferenciada e à qual agradeço muito o seu trabalho porque juntos conseguimos que a USP do Casa Pia esteja sempre a evoluir e a alcançar cada vez melhores resultados. É o trabalho em equipa da fisioterapia, com o coordenador Alexandre Estaca, os fisioterapeutas Tiago Sá, Carlos Duarte e o Ivo Figueira, do departamento de fisiologia Tiago Dias, do nutricionista Ricardo Cotovio e o psicólogo Ricardo Pires, que tornam muito mais fácil a minha tomada de decisão e o sucesso do nosso departamento. No ano passado o fisioterapeuta César Natário e o Paulo Correia na fisiologia também contribuíram muito para este sucesso.
Podes contar-nos sobre algum momento particularmente difícil na tua carreira? Como superaste esse obstáculo?
O momento mais difícil na minha carreira foi o caso do BSAD-Benfica. Houve um surto Covid-19 e como médico do BSAD tive de tomar decisões muito difíceis. A equipa começou o jogo apenas com 9 jogadores. Não me vou alongar muito, mas acredito que fiz os procedimentos certos e todos os intervenientes do processo deram o seu melhor e tomaram as decisões que acharam corretas.
Há algum caso médico com jogadores que mais marcou a tua carreira? Como foi lidar com ele?
Um caso que me marcou muito pela positiva foi a recuperação do André Ceitil. Quando cheguei ao UD Vilafranquense e realizei a anamnese dos jogadores, apercebi me do quão grave foi o processo pelo que passou e admiro a resiliência, a vontade e a capacidade de após dois anos em reabilitação voltar a jogar a um nível de excelência.
Como é a tua relação com os jogadores? Achas que o vínculo médico-atleta é diferente no futebol em comparação com outras modalidades?
Considero que tenho uma boa relação com todos os jogadores e acima de tudo uma relação de confiança. Um vínculo de confiança com os jogadores é o mais importante, uma vez que tomamos decisões sobre o seu corpo, a sua vida e a sua carreira profissional. Se não existir confiança nas nossas competências, não vamos conseguir ajudar o próprio atleta a recuperar ou melhorar. Fiz também muitos amigos ao longo da minha ainda curta carreira.
Como lidas com a pressão dos jogadores e equipa técnica para voltarem a campo rapidamente após uma lesão?
Não vejo nem considero que seja “pressão”. Cada departamento num clube de futebol tem os seus objetivos e o clube quer sempre ganhar. Se trabalharmos em conjunto e respeitarmos as decisões de cada departamento acredito que vamos ter sempre melhores resultados. Serem exigentes comigo para mim é positivo por vários motivos: confiam que posso fazer melhor e motivam-me para eu querer ser melhor. Por outro lado, se considerar que não têm razão, explico os motivos, sempre mostrando que o atleta é a principal personagem, mas estamos todos juntos no mesmo objetivo.
Que tipo de lesões são mais comuns no futebol? Como trabalhas na prevenção dessas lesões no Casa Pia?
As lesões mais comuns no futebol são as lesões musculares, cerca de 35%, 92% destas ocorrem nos membros inferiores. No mesmo estudo relata que 37% são lesões dos isquiotibiais, 30% nos adutores e 17% no quadricipete. A lesão é um processo influenciado por múltiplos factores e a sua prevenção tem de ter isso em conta. No Casa Pia AC para além dos profissionais altamente diferenciados nas suas áreas que constituem a USP, temos uma parceria com o departamento de medicina dentária desportiva da Egas Moniz School of Health Science. Esta parceria permite o acesso a profissionais e recursos especializados, permitindo dessa forma identificar fatores de risco e intervir nesta área extremamente relevante. A prevenção de lesões começa na pré época, sabendo as exigências e a epidemiologias das lesões do futebol profissional. São realizados testes que nos permitem avaliar fatores de risco, alguns são modificáveis como a força, outros como a idade e lesões prévias são não modificáveis. Sabendo os resultados dos testes e o que o atleta necessita melhorar é realizado entre o atleta e a USP um plano individualizado com o objetivo de corrigir esses fatores de risco. Periodicamente realizamos os mesmo testes para perceber se conseguimos ter sucesso e diminuir o risco de lesão do atleta. Ainda no que diz respeito à prevenção de lesões, em conjunto com o preparador físico da equipa técnica e por vezes conhecendo alguns fatores de risco para cada atleta, intervimos na gestão de cargas do treino do mesmo.
Achas que o futebol português está em um bom caminho no que se refere à medicina desportiva, ou há áreas que ainda podem evoluir?
O futebol português tem evoluído muito na Medicina Desportiva e tem demonstrado bastante a importância desta. Têm sido realizadas reuniões periódicas com os diretores dos departamentos médicos dos vários clubes e a Liga Portuguesa de Futebol com o intuito de crescermos, saberem as nossas questões, preocupações e sugestões. Têm sido feito vários protocolos de atuação e material educativo com esta parceria da Liga e os departamentos médicos. Tenho de dar os parabéns à Liga pelo esforço e o trabalho que estão a realizar.
Que legado gostarias de deixar no futebol e na medicina desportiva?
Acho que sou muito novo para falar em legados no futebol e na medicina desportiva, ainda tenho muito que crescer e aprender também. Mas na realidade o meu objetivo é que todos percebam que o sucesso desportivo está correlacionado com o sucesso da Medicina Desportiva. Quero conseguir mostrar que a confiança no trabalho dos profissionais do departamento médico pode aproximar o clube do sucesso desportivo.
Que conselho darias a médicos recém-formados que desejam seguir a área da medicina desportiva?
Se gostam de desporto e da área médica devem seguir os seus sonhos e nunca deixar de lutar por eles. Ao contrários das outras áreas médicas, em que a carreira está muito bem definida, na medicina desportiva mesmo após a conclusão de toda formação (especialidade, pós graduação, outros cursos) a carreira vai depender da capacidade de trabalho, de aprendizagem e da vontade de seguir Medicina Desportiva.
Como fazes para equilibrar a vida pessoal e uma carreira que exige tanto em termos de tempo e energia?
A medicina é uma carreira muito exigente, onde a procura por informação e a constante atualização são fundamentais. É uma área onde todas as decisões são de grande responsabilidade e onde é inerente que não se consiga desligar em casa porque é a vida das pessoas que está nas nossas mãos. Quando falamos numa carreira de medicina desportiva no futebol profissional acho que 90% das pessoas que não trabalha na área não compreende a exigência do mesmo. Para um elemento do staff, da equipa técnica e de um jogador não existem horários. Existem problemas para tratar a todas a horas, os fim de semanas são ocupados a trabalhar e longe da família, as folgas são em dias sempre diferentes e as férias apenas em junho. Tenho de agradecer muito à minha família, aos meus amigos e principalmente à minha namorada. Tenho de lhe agradecer porque é um apoio constante no meu dia a dia, é um porto de abrigo para os problemas mesmo sabendo o tempo que esta profissão me ocupa. Sempre que tenho tempo livre, aproveito para passar tempo de qualidade com a minha namorada, amigos e família.
Fora do futebol, quais são as tuas maiores paixões ou hobbies? Como te ajudam a descomprimir da rotina?
Gosto muito de passar o dia com a namorada, jantar fora e descontrair na companhia de uma ou outra imperial com os amigos. Também gosto muito de jogar padel, andar de karts, ver filmes e séries.
Qual é a tua maior satisfação ao trabalhar com jovens atletas, sabendo que tens um papel crucial no desenvolvimento físico e profissional deles?
Claro que fico muito satisfeito porque, para além de tomar decisões que afetam diretamente a carreira dos atletas, estabeleço uma ligação forte com eles e consigo transmitir valores que considero importantes. Defendo que quando a educação e formação desportiva é a correta, também no desporto, conseguimos adquirir competências que vão ser reprodutíveis para superarmos etapas durante toda a vida.Autor: Catalina Ramirez